Arte, Reflexão e Encontro: considerações importantes
Bate-Papo entre José Miguel Wisnik e Siba
A Paixão na Arte Vanguardista - SESC Piracicaba/Maio 2018
A Paixão na Arte Vanguardista - SESC Piracicaba/Maio 2018
Em
tempos desalentadores como o nosso, compartilhar espaços poéticos e reflexivos possibilitam,
de algum modo, certo sinal de vida, como se encontrássemos pequenas faíscas de encantamento
que têm o poder de inventar, recriar e grassar uma emoção mais genuína entre todos
aqueles que almejam respirar ares menos nefastos. Foi assim o diálogo entre
estes dois poetas artistas brasileiros: música,
poesia e sabedoria se intercalaram durante quase duas horas, com o seleto
público presente.
Para
abordar a arte, foi necessário proclamar a vida, sublinhando a existência de
cada um de nós com a pergunta essencial, insinuada nas entrelinhas: por que
estamos aqui, para que vivemos? Magistralmente, tanto Wisnik como Siba nos
indicaram as pegadas de seus caminhos, com testemunhos de percalços e
estranhamentos. Assim quem sabe pudéssemos, como anônimos mortais de um planeta
tão esquisito, entender qualquer que fosse a substância desse mundo, caótico e
irracional. Uma destas substâncias, sem dúvida, é a paixão.
Será que todos os humanos presentes
nesse encontro são nutridos pela paixão? Uma das minhas convidadas, também
artista, confidenciou-me logo depois que não poderia ter estado em outro local
naquele dia, que se sentia plena por estar ali, agradecendo-me a lembrança do
convite. Ambas partilhamos a mesma paixão, essa intensidade que apenas a arte
oferece à existência.
No silêncio que nunca é silêncio ou
quase é silêncio, Wisnik, lembrando Arnaldo Antunes, nos apresentou um pouco do
seu repertório sobre a história musical do Ocidente. Haveria algum lugar ou
algum corpo terrestre totalmente silencioso? Não, não haveria, impossível!
Somos música, compreendi. Mas infelizmente, penso, estamos produzindo sons
demasiados, ruídos estridentes e gritos pavorosos por todo o globo,
selecionando aqueles que queremos ouvir e aqueles que fingimos nem saber. Falta-nos
ética e compaixão.
Do outro lado do palco, Siba fez
questão de registrar a alegria da música de Pernambuco, criada obstinadamente
por um povo sofrido e abandonado que é o povo pobre deste nosso país. A resistência
habita a arte, se desejarmos. Aquela resistência que impede o indivíduo de se
matar e o agrupa com outros para construir uma biografia que valha a pena. Quantas
pessoas não são massacradas diariamente na luta por uma sobrevivência ingrata e
por vezes indigna?
Tanto
o maracatu quanto o frevo e outros estilos musicais do Brasil são expressões culturais
populares extremamente ricas, que dialogam, a bem da verdade, com a tradição.
Por que temos que insistir no pensamento binário? Cultura popular x cultura
erudita, vanguarda x tradição, progresso x atraso, bem x mal, amor x ódio, e claro,
esquerda x direita, a grande e velha controvérsia recente!
Os artistas reiteram o mesmo
posicionamento, de que entre um polo e outro há tensão, há trânsito e
interpenetração criativa de práticas, linguagens, conceitos e afetos. Alguém poderia
afirmar-se como um ser bom, puro, em detrimento de seu próprio lado mal? O que
fazer com nossos pequenos fascismos diários, nossas micro relações perversas
cultivadas mesmo sem perceber? E quanto ao papel político da arte, podemos
pensar que ela contribui com a criação de “modos de vida não fascistas”? Siba e
Wisnik parecem entender que sim, bem como o filósofo francês do século XX,
Michel Foucault.
Fomos ensinados a raciocinar a
partir de uma lógica linear, excludente e maniqueísta, que não mais se sustenta.
A concepção de progresso e, junto a ela, de vanguarda e evolução humana ruiu, desmoronou,
esfacelou-se. Encontramo-nos neste início de século desamparadíssimos,
obrigados a olharmo-nos num espelho sem reflexo, numa imagem sem contorno, num
céu sem promessas. Nietzsche já anunciou a morte de Deus faz mais de cem anos,
mas talvez somente agora é que estejamos compreendendo o significado desta
sentença. Cabe a cada um e a todos coletivamente, cabe à arte, à ciência e à
filosofia confrontar-se com o destino que a História nos reservou.
Um brinde à criação e à
possibilidade de reivenção contínua.
De
Caetano Veloso, os versos de Cajuína:
Existirmos a que será que se destina
Pois quando tu me deste a rosa
pequenina
Vi que és um homem lindo e que se
acaso a sina
De um menino infeliz não se nos
ilumina
Tão pouco turva-se a lágrima
nordestina
E apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
Da cajuína cristalina em Teresina.
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