Arte: criação e sentido
Muitas são as formas através das quais podemos expressar nossa visão de mundo, nossa afetividade, nossa inteligência e nossos desejos, conscientes e inconscientes. A arte se constituti justamente como uma destas formas, contemplando diversas linguagens plenas de criação para todos nós, seres humanos.
É um tanto empobrecedor, no entanto, conceber a arte de modo utilitário, ou seja, pensar e desenvolver o teatro, a música, a pintura e a literatura como atividades que devem ser realizadas tão somente para fins pedagógicos ou terapêuticos, por exemplo. O fazer artístico revela-se mais abrangente, completo e potente do que supõem os técnicos e especialistas das áreas de humanidades, saúde e treinamento pessoal.
Ideal seria, a meu ver, que os campos artísticos fizessem parte intrínseca de nossas vidas desde o berço, cultivando certa sensibilidade que nos inspirasse o amor e a paixão pela literatura, pela poesia, pela música, a pintura e a dança. Se assim fosse, naturalmente iríamos aos museus, lotaríamos com prazer os teatros e teríamos um outro conhecimento sobre nós mesmos e sobre a vida.
Seríamos mais felizes ou mais críticos? Teríamos mais civilidade e menos barbárie? Não sei a resposta, há argumentos tanto para um sim quanto para um não. Na minha imaginação, contudo, a vida teria mais sentido, seria mais interessante e afetuosa.
Como nunca é tarde para nos reinventarmos, deixo aqui a proposta que me foi feita pelo professor de artes visuais Guilherme Teixeira: escrever uma carta apaixonada para um artista muito querido, um escritor ou um compositor, um ator ou atriz, um poeta ou poetisa (outras ideias: criar um desenho ou uma pintura ouvindo música; fotografar coisas diferentes das quais normalmente se fotografa, experimentando novos objetos e ângulos; imaginar uma história e escrevê-la ou desenhá-la).
Aproveito ainda para compartilhar a minha própria carta, elaborada no final de 2017, para Franz Kafka.
"Caríssimo Kafka
Suas obras há muito me inspiram. Mesmo tendo-as contemplado
na tradução para o português, creio que a universalidade e a contemporaneidade de
sua escrita me cativaram, a tal ponto de não prejudicar a compreensão do
sentido das suas palavras.
As palavras, posso afirmar, constituíram-me quem sou. Na
ausência delas não posso imaginar quem seria. Desde muito pequena aprendi a amá-las
e assim fui me tornando um ser humano. Aprendi a pronunciá-las, depois a
desenhá-las e borrá-las com papel e tinta, graça e prazer. Por isso cada livro que
tive acesso propiciou-me um gosto particular, um deleite especial.
Mas foi com você, caríssimo Kafka, que descobri a eternidade
e a completude. Não encontrei nenhum outro escritor com tantas qualidades como
as suas. Agradeço humildemente cada frase de sua obra O Processo,
embora todos os contos e romances que você escreveu também habitam minha
alma. O que seria da humanidade se o seu grande amigo Max Brod tivesse
realmente queimado os papéis que você determinou? Seria muita tirania de sua
parte privar a nós - meros mortais, cidadãos comuns de um mundo em declínio
vertiginoso - de seus delírios fulgurantes, terríveis e aparentemente surreais.
Sei que o grande tirano de sua vida foi seu próprio pai. A
carta que a ele você escreveu é de rara beleza, grande aflição, sofrimento e comoção.
Pena ele não ter lido, triste você ter morrido tão jovem com muito
ressentimento e sem reencontrá-lo. Será que você não iria apreciar saber que esta carta e muitos
outros livros, frutos da imaginação e da vivência que você teve, continuam a
ser lidos, traduzidos e adaptados para o teatro e o cinema em pleno século XXI?
Muitos dos seus aficionados leitores se perguntam se de fato você desejou a
morte dos próprios textos que escreveu.
De minha parte, isso seria uma injustiça. Nossas vidas são
tão pobres, sem a arte e a literatura seriam ainda mais! Se você tivesse
conseguido nos privar do Processo, do Castelo, do Artista da Fome, da
Metamorfose, da Colônia Penal e até dos seus diários, confesso que minha forma de
sentir e ver o mundo seria mais infeliz.
Sim, porque foi você o gênio capaz de escrever, de configurar
e de revelar magistralmente, magnificamente o que é o homem moderno trágico e
contemporâneo. Sua vida, com certeza, foi a tragédia do Processo, a dor da
Carta ao Pai, o desespero da Metamorfose e o desamparo e morte do Artista da
Fome. Todavia você teve a honra, a dádiva e o talento - não sei nomear o que é -
de transformar a própria história em arte, em beleza arrebatadora que emociona
quem se deixa tocar.
Sinto-me privilegiada por ter partilhado desta experiência
estética com outras pessoas, por ter tido a possibilidade de imaginar os
personagens que você imaginou para si mesmo e para todos nós, as narrativas um
tanto quanto estranhas de seres esquisitos, culpados, fracassados, perseguidos,
que buscam a vida e acabam por sucumbir à morte.
Todas as suas narrativas são absolutamente comoventes, ao nos
apresentar a fragilidade humana frente ao mundo desumano, claustrofóbico,
aparelhado por instituições que nos destituem de humanidade, de força, de
esperança e de poder. É impressionante sua descrição acerca da burocracia, dos
prédios e das autoridades pelas quais seu alter ego Joseph K é massacrado,
atormentado e incriminado, sem nunca saber o motivo. Trata-se de um homem
culpado sem ter cometido crime algum, acossado por um sistema absurdo, injusto.
Meu encantamento por você se deve principalmente por esse
clima ilógico imposto aos seus protagonistas, que à primeira vista nos parece
irreal, mas com o tempo compreendemos que tal ficção é a realidade de nossas
vidas cotidianas. Todos somos Joseph K, somos povoados pela culpa dos juízes
que nos julgam cotidianamente. E esses juízes não estão apenas dentro de nós,
não são somente representações internas, eles existem, são substância e matéria.
Se você tivesse vivo ainda hoje, testemunharia a
contemporaneidade de sua obra, a vitalidade de suas histórias e a tragédia
inesgotável do ser humano. Você perceberia que seus romances foram
criações de extrema lucidez, prováveis exercícios de sanidade mental. A vida é
absurda e para sobreviver a ela com gana e resistência, resta-nos a arte, a
literatura, a poesia, o teatro e algum sonho belo, lírico, doce e terrível ao
mesmo tempo."
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