Da comoção que nos falta

Um dos temas mais interessantes a serem discutidos na modernidade, do meu ponto de vista, é a comoção. Refiro-me à comoção como a capacidade que temos ou não de nos comover com o outro, de sermos tocados e afetados (no sentido de afeto) por alguém com quem convivemos ou nem conhecemos. No Psicodrama, esta capacidade é o próprio fundamento da técnica, da filosofia e da teoria. Não há relação de ajuda possível se não houver comoção, pois é através deste sentimento que nos colocamos no lugar do outro e possibilitamos envolvimentos afetivos transformadores.

O momento histórico que estamos vivendo sinaliza cada vez mais a ausência de comoção social no tocante às chamadas minorias: refugiados, imigrantes pobres, negros, transexuais, doentes mentais. A Anistia Internacional Brasil, por exemplo, vem chamando atenção, frequentemente, para a grave situação das periferias brasileiras, nas quais ocorre um genocídio de populações marginalizadas, vitimando especialmente meninos negros, assassinados pela polícia. Em um dos relatórios da Anistia, Átila Roque, diretor da organização, afirma que não há comoção alguma por parte dos cidadãos a respeito das diárias mortes desses meninos pobres. Predomina a indiferença absoluta, o que acaba por autorizar os assassinatos.


A pergunta que segue é inquietante: por que não nos comovemos com essas mortes? Quais são os mecanismos que garantem a indiferença e quais as possíveis estratégias que poderiam estimular uma outra percepção, abrindo perspectivas para a comoção?

Judith Butler, filósofa americana cuja obra se alicerça em um dos maiores filósofos do século XX, Michel Foucault, problematiza de forma elucidante a questão. Afirma ela que todos nós estamos sujeitos a enquadramentos sócio culturais, isto é, molduras que direcionam nossa interpretação sobre o mundo, delimitando nossos afetos e valores acerca da vida e da morte. A imagem, por sua vez, constitui o enquadramento mais potente da sociedade. Como exemplo, podemos citar o telejornalismo brasileiro: qual a narrativa produzida pelos canais Bandeirantes, SBT e Globo a respeito dos moradores da periferia?

Em geral os pobres, em sua maioria negros, são literalmente enquadrados pela polícia, como se fossem todos bandidos. Sendo assim, passam a representar, no imaginário social, uma ameaça à vida humana, o que justifica e legitima a perseguição e o assassinato constante pelos agentes do Estado. A vida destas pessoas são "vidas não vivíveis", segundo Butler, pois não há reconhecimento de "vida a ser vivível" para elas. Este é o enquadramento produzido para diversas populações civis do globo terrestre, que Butler denomina "populações sacrificadas", ou melhor, populações geridas pela lógica do extermínio. 

"Essas populações são "perdíveis", ou podem ser sacrificadas, precisamente porque foram enquadradas como já tendo sido perdidas ou sacrificadas; são consideradas como ameaças à vida humana como a conhecemos, e não como populações vivas que necessitam de proteção contra a violência ilegítima do Estado, a fome e as pandemias." Butler, J. - Quadros de Guerra - quando a vida é passível de luto? 


Qual o nosso papel e a nossa responsabilidade, como seres humanos, frente a isso? Se nos sentimos indiferentes, com medo ou com ódio, não nos responsabilizamos, não nos importamos. Pelo contrário, justificamos as mortes pela própria ótica do extermínio, muitas vezes sem perceber. São necessários outros enquadramentos, que estimulem novas percepções, novos olhares e novas respostas afetivas, visando enfrentar o desafio de conceber uma ética global, que reformule o conceito de responsabilidade frente às condições precárias das populações sacrificadas.

A arte - fotografia, cinema, teatro, literatura -, os meios de comunicação como a internet, os grupos - ongs, movimentos sociais de mães e estudantes -, os intelectuais e todos os profissionais que se empenham em estudar e produzir conhecimento crítico formam redes que vêm se articulando, no sentido de criar enquadramentos diferenciados daqueles que a mídia dominante nos apresenta. Desta maneira torna-se possível ampliar e fortalecer a comoção necessária para reivindicar a vida como um direito de todos. 

Nesta era de retrocessos em que estamos, nada mais urgente.

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