A humanidade dos Satyros: sobre o “outro diferente”
Quantos de nós já parou para
pensar em como vivem os moradores de rua, como sobrevivem as prostitutas e os
travestis, as crianças nos faróis da cidade, os chamados “doentes mentais” e todos
os não autorizados à cidadania, que se encontram “à margem” daquilo que se
convencionou chamar civilização moderna?
Será que alguns de nós sequer
consegue perceber que “estas pessoas”, visíveis apenas quando nos incomodam com
sua aparência, seus pedidos ou mesmo roubos, são seres humanos? Aprendemos a
olhá-las como não humanos, o que contradiz absolutamente a concepção de vivermos
em uma suposta civilização igualitária, solidária e evoluída. A evolução da
qual participamos no mundo todo é a da tecnologia, não das relações humanas.
Podemos argumentar, inclusive,
que há muitos grupos considerados “não humanos” nesse nosso planeta, ou seja,
pessoas que podem ou devem morrer, seres que “atrapalham” o sistema capitalista
e que, portanto, não têm o mesmo direito à vida que nós, mais abastados e
organizados financeiramente. Através da mídia dominante, que cria diariamente
imagens violentas acerca destes grupos, seguimos internalizando preconceitos
que nos levam à total indiferença, senão ao ódio. Eis o nosso fascismo
cotidiano, tão antigo quanto pós moderno!
Em cada época histórica, elege-se
determinados grupos a serem desumanizados: quando os europeus chegaram às
Américas, os índios não eram humanos, nem para a Igreja Católica. Foram
dizimados e até hoje ainda não são tratados como cidadãos. Os povos negros,
idem, inumanos. Na Segunda Guerra Mundial, os judeus foram cruelmente
assassinados em nome da superioridade ariana, com apoio dissimulado de diversos
países europeus, como a França e a Inglaterra. Atualmente, são os próprios
judeus de Israel que desumanizam os árabes, matando-os indiscriminadamente na
região da Faixa de Gaza. Há ainda os refugiados, expulsos de seus países pelas
guerras em curso. E outros, muitos “outros diferentes” espalhados pelos seis continentes terrestres.
Mas se é verdade que esta
desumanização prossegue em escala mundial, também é fato que muitos cidadãos,
pessoas comuns e artistas se sentem incomodados diante de valores tão sórdidos.
Por isso eu gostaria de compartilhar minha experiência com a peça Pessoas
Perfeitas, do grupo de teatro Os Satyros que, através da arte, propõe a
humanização da vida.
Com mais de 20 anos de trabalho,
a Companhia de Teatro Os Satyros atualmente fixa residência na Praça Roosevelt
de São Paulo e cada vez mais se notabiliza na criação de uma dramaturgia
própria, inovadora e questionadora dos padrões sociais. Reconhecido
internacionalmente, diversas peças do grupo foram premiadas, dentre elas
Pessoas Perfeitas – Prêmio APCA de Melhor Espetáculo em 2014.
Pessoas Perfeitas nasceu a partir
de pesquisas com moradores de rua do próprio centro de SP. Assistindo a peça,
acompanhamos as peripécias de personagens que pouco nos sensibilizariam, não
fosse a tamanha criatividade e ternura do grupo ao representá-los. Sei que
posso estar enganada, mas acredito que até o mais duro e preconceituoso dos
corações humanos se fragilizaria ao partilhar a dor dos “diferentes” quando
encarnados humanamente. E aqui está justamente a possibilidade de humanização:
olhar o outro “suposto ninguém”, por um instante que seja, como igual, próximo,
com dores semelhantes, vivendo situações não tão distantes da nossa. Estranho,
surpreendente, assustador?
Nunca me esqueço de uma pessoa
que me perguntou, certa vez, quando eu trabalhava com crianças em situação de
vulnerabilidade social, se estas crianças sofrem. Uma triste e lamentável pergunta,
que revela o distanciamento e a insensibilidade para com todos aqueles que
estão ao nosso lado, que vemos diariamente nas ruas mas fingimos não ver, que desconsideramos
como seres humanos. E o pior, algo que não nos damos conta é que quando
desumanizamos alguém, quando retiramos simbolicamente a possibilidade de vida
do outro, nós é que perdemos a humanidade, nós é que nos tornamos desumanos.
Reinventar nossa própria
humanidade é tão urgente quanto resolver os problemas corriqueiros do
dia-a-dia, a crise financeira, as dores físicas ou emocionais. Nossa redenção
enquanto espécie humana depende disso e a arte é nossa parceira. Sigamos os
Satyros!
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