Ética e comoção: diálogos com Judith Butler p.2




















Dando continuidade à proposta da postagem anterior, segue o texto-diálogo com Judith Butler, escrito por mim em 2016 para o Congresso Brasileiro de Psicodrama, sobre ética, luto e ausência de comoção social.

Ética, Luto e Comoção: um diálogo com Judith Butler - Segunda parte


Nossos Mortos Têm Voz: Um Grito Por Justiça
Atualmente, com expressão internacional, o Movimento Mães de Maio (SP) conclama que "Os Nossos Mortos têm Voz". Formado por mulheres cujos filhos foram assassinados por policiais militares a partir de 2006, o grupo vem conseguindo criar uma outra narrativa para a morte de seus filhos, na luta por reconhecimento da vida que eles perderam. Trata-se de uma luta política, mobilizada pela indignação e pela dor de perda irreparável, buscando sensibilizar a sociedade para que se importe, para que não permaneça indiferente. 
Através da internet e de apoios de outros grupos, as Mães de Maio constituem uma frente de resistência, promovendo um novo enquadramento em relação à morte e à vida de seus filhos assassinados, desestabilizando, pois, o enquadramento dominante feito pela mídia impressa e televisiva. Falar sobre os seus mortos, nomeá-los, narrar a vida deles e a dor por perdê-los é uma forma de instaurar certo luto público, obstruído pelo Estado e pelos meios de comunicação. Assim, essas mulheres guerreiras vêm conseguindo indignar e comover uma parte da sociedade, que vive sob o controle das políticas de comoção regulando os afetos.

      Conforme já explicitado, a comoção é seletiva e tal seletividade ocorre por meio dos enquadramentos. Por isso sentimo-nos tocados com certas tragédias e não com outras; antes, muitas vezes achamos justo que certas pessoas morram. Nossas respostas afetivas e morais, portanto, estão subordinadas a normas de poder e controle. Se quisermos modificar estas respostas, precisamos entender quais são os esquemas interpretativos que nos condicionam a sentir comoção por determinados povos e pessoas e indiferença por outros. O fato de nos sentirmos ameaçados, por exemplo, é um dos fatores que viabiliza a indiferença e o ódio.
 Em função dos enquadramentos propostos pelas imagens elegerem, em geral, bons e maus, mocinhos e bandidos, estabelece-se uma lógica binária, mortífera e excludente sobre o direito à vida, aos grupos e à sociedade. Se os pobres da periferia são bandidos, devem mesmo morrer, posto que ameaçam nossas vidas! Se os muçulmanos são terroristas, é justo que os EUA os assassinem! Estas são justificativas a criar sentidos legitimadores para assassinatos e genocídios que estão sendo cometidos diariamente por agentes do Estado. A partir destes sentidos, certas populações perdem o reconhecimento da própria vida por uma grande parcela da sociedade, enquanto se fortalecem no interior da comunidade que habitam, amparadas entre si por uma solidariedade resiliente. Afinal, essas pessoas não estão mortas, existem criativamente. Por estarem vivas, sentem-se indignadas ao terem negadas suas condições de sobrevivência e seus direitos básicos.
Não obstante, o ciclo interminável da guerra vem alimentando, indiscriminadamente, violência para todas as vidas, mesmo as nossas, reconhecidas. Somos todos vulneráveis à destruição, estejamos em qualquer lugar do mundo. Há uma relação de interdependência entre os povos, algo que não tem sido problematizado. Julgar-se impermeável e invulnerável é um erro estratégico das nações imperialistas, porém é baseado neste erro que políticas de Estado são desenvolvidas e implementadas. Faz-se necessário, no presente momento, reconsiderar: somos todos vidas precárias porque dependemos uns dos outros tanto para viver quanto para morrer. Temos o poder de garantir a vida um ao outro, tanto quanto temos o poder de destruir a vida um do outro. 
Promover essa compreensão que reconhece a condição generalizada de precariedade para todos os humanos é um passo importante na construção de uma ética global mais responsável. Romper a cisão entre vidas enlutáveis e não enlutáveis, propondo e criando enquadramentos nessa direção é uma tarefa de todos nós, cidadãos de qualquer país. Para essa empreitada é preciso conhecer e valorizar a função dos nossos sentidos. Os enquadramentos aos quais estamos sujeitos impactam principalmente nossos aparelhos perceptivos inconscientes. Somos absorvidos por uma determinada imagem que nos causa comoção ou repulsa, dependendo da narrativa que se produz dentro do enquadramento imposto. Sendo assim, é também através dos sentidos que se podem criar outros referenciais de entendimento acerca do mundo que nos rodeia. Daí a importância da linguagem artística.

Arte e Resistência
Muitas fotografias e poesias são responsáveis por despertar o sentimento de comoção em relação às populações cujas vidas são as mais precárias e vulneráveis do planeta. Há constantes polêmicas sobre imagens chocantes que circulam o mundo, especialmente através da internet, revelando as condições de subumanidade em que grupos de pessoas vivem e morrem. Essas fotos criam uma capacidade de resposta afetiva/moral ou não? Podem nos comover e nos instigar a responder de outra maneira? O que dizer das imagens recentes sobre os refugiados morrendo no mar ou dos moradores de rua sucumbindo ao frio em SP? E dos prisioneiros nas penitenciárias brasileiras? As fotos dos detentos da Baia de Guantánamo, publicadas desde 2004, criaram comoção? O livro recém lançado, Diário de Guantánamo (2015), fez grande sucesso nos EUA, denunciando mais uma vez a injustiça do estado de exceção lá estabelecido.
No início deste século, o Pentágono americano justificou a censura aos poemas escritos pelos prisioneiros de Guantánamo - divulgados através das redes de ativistas de direitos  humanos -, declarando que a poesia é um risco para a segurança do país devido ao conteúdo e à forma em que se apresenta. Por que? Será que os poemas revelam atrocidades e barbáries cometidas pelos arautos da democracia? Para Butler, sem dúvida alguma os poemas exaltam as possibilidades de resistência:  

Como uma rede de comoções transitivas, os poemas – na sua criação e na sua disseminação – são atos críticos de resistência, interpretações insurgentes, atos incendiários que, de algum modo e inacreditavelmente, vivem através da violência à qual se opõem, mesmo que ainda não saibamos em que circunstâncias essas vidas sobreviverão. (Butler, 2015, p. 97)

No Brasil, muitas têm sido as formas de apresentar modelos diferenciados de interpretação da realidade, que confrontem as narrativas dominantes, sendo que a internet é o veículo principal para a difusão desses novos olhares. Poderíamos citar também a literatura marginal, uma produção artística de autores que vêm da periferia, tal como Sérgio Vaz, poeta reconhecido por organizar saraus em SP e Ferréz, escritor consagrado de romances que contam as trágicas histórias das “quebradas”.

Um dia o menino não tem o que comer, é faminto. Noutro, não tem onde morar, é de rua. Outro dia lhe falta família, é órfão. Adiante trabalha numa usina de carvão, é escravo. Agora pouco, com revólver na mão, era príncipe pé na bola, rei. Um dia inteiro de uma vida cabe dentro da eternidade do menino. Num dia nasce, vive e morre. Depois vira filme nas mãos de um outro menino que o socorre. (VAZ, 2006, p. 32)

Todas essas expressões formam circuitos de interação que se articulam em redes, buscando reivindicar a vida ao amplificar a comoção, sentimento que nos mobiliza no acolhimento para com a dor do outro. É preciso, cada vez mais, estimular e ampliar a participação dos cidadãos nestas redes de alteridade. 

Finalizando
No contexto da pós modernidade, o desafio de conceber uma ética global, que reformule o conceito de responsabilidade frente às condições precárias das populações sacrificadas é urgente. Para isso, contudo, há que se criar novos mecanismos de percepção e sentido, questionando e perturbando as narrativas dominantes. O potencial das linguagens artísticas e das novas mídias pode incentivar enquadramentos outros, voltados para o enfrentamento dos sistemas de poder da sociedade. A criação incessante de alternativas, direcionadas à construção de um projeto ético capaz de contemplar todas as vidas precárias e assim confrontar a barbárie, necessita ser proclamada como uma incumbência e um dever de todos nós, cidadãos e políticos, seres humanos enfim, que partilham a vida em comum neste planeta Terra.  


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