Ética e comoção: diálogos com Judith Butler p.1




















Em função da histeria nas redes sociais, promovida por grupos ignorantes que tentam impedir a participação de uma importante filósofa americana no Evento do SESC Pompéia a partir do dia 7/11, denominado Os Fins da Democracia, publico o texto que escrevi em 2016 para o Congresso Brasileiro de Psicodrama, sobre ética, luto e ausência de comoção social. A publicação será realizada em 2 postagens. 

Judith Butler, é imprescindível esclarecer para quem não conhece sua obra, foi uma das filósofas que discutiu as teorias de gênero e sexualidade nos anos 80 e 90, propondo novos conceitos e abordagens sobre o tema. No século XXI, Butler vem se debruçando acerca de outras questões, especificamente sobre ética, populações em condições precárias de sobrevivência, ausência de luto e comoção. No evento do SESC, a filósofa estará lançando os livros Caminhos Divergentes: Judaicidade e Crítica do Sionismo e A Vida Psíquica do Poder: Teorias da Sujeição. 


Ética, Luto e Comoção: um diálogo com Judith Butler - Primeira parte


           Do Princípio: Alguém Se Importa?
Há uma guerra permanente e invisível ocorrendo em diversos espaços urbanos praticamente militarizados, de países como o Brasil, EUA, França e muitos outros. O tema deste texto busca dar visibilidade e colocar em discussão a violência que incide notadamente sobre os habitantes desses espaços periféricos, a saber, as minorias negadas do submundo desumanizado, das “quebradas” assassinas que a sociedade criou e perversamente mantém. Qual seria o percurso necessário para viabilizar um debate tão urgente? Discutir a ética, refletindo sobre qual a nossa responsabilidade frente ao mundo?
Primeiramente é preciso que nos perguntemos se ficamos ou não comovidos diante do que alguns filósofos, como Giorgio Agamben (2004), denominam “estado de exceção permanente”, confirmado pela Anistia Internacional Brasil, que vem alertando para a grave situação das periferias, nas quais ocorre um genocídio de populações marginalizadas e pobres. As vítimas deste genocídio são especialmente jovens meninos negros, assassinados pelos agentes do Estado policial brasileiro. Em um dos informes divulgados pela Anistia, Átila Roque, diretor da organização, conclama a sociedade para que se posicione. Afirma ele que não há comoção alguma por parte dos cidadãos a respeito das diárias mortes desses meninos pobres. Predomina a indiferença absoluta, o que acaba por autorizar os assassinatos.
A pergunta é inquietante: por que não nos comovemos? Quais são os mecanismos que garantem a indiferença e quais as estratégias que poderiam estimular uma outra percepção desta violência, abrindo perspectivas para a comoção? Seria necessário um posicionamento político-ideológico dos cidadãos, a fim de construir uma nova ética?

Dialogando: Enquadramento, Luto e Comoção
Judith Butler, filósofa americana, autora de diversos livros importantes sobre o assunto em pauta, problematiza questões relacionadas à ética e à ausência de luto público acerca das mortes cujas vidas não têm valor na sociedade ocidental, portanto não comovem. Butler (2015), especialmente em Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?, discute os enquadramentos que impossibilitam a sensibilidade para com tais mortes, propondo novos olhares e apresentando outras possibilidades de compor a percepção, que não desprezem o que chama de “vidas precárias”.
 A discussão proposta pela filósofa contribui sobremaneira com a temática, na medida em que advoga por uma ética que não seja excludente, mas ao contrário, que venha garantir a proteção das vidas mais precárias, reconhecendo-as como vidas. Esta ética implica no princípio de que toda vida é precária e para mantê-la faz-se necessário criar permanentemente condições sócio políticas de sustentação, manutenção e proteção. Por que tais condições inexistem em relação a determinadas populações?
Dialogar com Butler propicia refletir se é possível promover novos enquadramentos, que amplifiquem a comoção social diante das mortes daqueles considerados indignos de vida. Para isso, apreender o conceito de enquadramento que ela preconiza é algo imprescindível. O que significam tais enquadramentos e como funcionam? Judith Butler se filia à obra de Michel Foucault, logo toda sua filosofia tem por base a concepção de normatividade. Sendo assim, enquadramentos são entendidos como molduras sócio culturais que direcionam nossa interpretação sobre o mundo, a partir de normas definidas antecipadamente.
Os mais potentes enquadramentos a formar e definir molduras que delimitam nossos afetos e valores, sobre a vida e sobre a morte na sociedade, se dão através da imagem. As imagens são potências interpretativas e narrativas, contendo normas das quais nem sempre nos damos conta. Vejamos o exemplo do telejornalismo brasileiro: qual a narrativa produzida pelos jornais de televisão a respeito dos moradores da periferia?
Em geral, nos jornais da TV brasileira os negros e pobres são literalmente enquadrados pela polícia, como se fossem todos bandidos. Se a priori são publicamente enquadrados como bandidos, passam a representar para a sociedade uma ameaça à vida humana, o que justifica e legitima, portanto, a perseguição e o assassinato frequente pela polícia. As imagens diárias transmitidas pela TV emolduram/enquadram essa população como constituindo vidas que não são exatamente vidas, que não têm o reconhecimento de “vivíveis”, que podem/devem ser destruídas. Trata-se, assim, da construção social e imaginária de uma população que deve morrer: suas vidas não valem como vidas, não têm consentimento de “vida a ser vivível”.
Segundo Butler (2015), este é o enquadramento produzido para diversas populações civis do globo terrestre. Ela denomina “populações sacrificadas” - os muçulmanos, os refugiados, os homossexuais e transexuais, imigrantes, indígenas, doentes mentais. Tais enquadramentos são guiados pela normatividade da lógica do extermínio, que inclui a negação do luto como estratégia de dominação.

 Essas populações são “perdíveis”, ou podem ser sacrificadas, precisamente porque foram enquadradas como já tendo sido perdidas ou sacrificadas; são consideradas como ameaças à vida humana como a conhecemos, e não como populações vivas que necessitam de proteção contra a violência ilegítima do Estado, a fome e as pandemias. Consequentemente, quando essas vidas são perdidas, não são objeto de lamentação, uma vez que, na lógica distorcida que racionaliza sua morte, a perda dessas populações é considerada necessária para proteger a vida dos “vivos”. (BUTLER, 2015, p. 53)

A guerra diária com a qual não nos comovemos é sustentada e legitimada por estes enquadramentos, que regulam nossa percepção e nossa interpretação da realidade. Frente à tal moldura, não nos importa a morte dessas pessoas: por elas não nos responsabilizamos nem nos interessamos, posto que não as reconhecemos como vidas.
Butler nos ajuda a questionar, porém, a cisão entre estas vidas – que não devem ser vividas e carecem de luto quando são perdidas – e as vidas que podem ser vividas, merecendo luto público. Sua reflexão discute a condição da mortalidade como um vetor de força a agir pela preservação da vida.

 É exatamente porque um ser vivo pode morrer que é necessário cuidar dele para que possa viver. Apenas em   condições  nas quais a perda tem importância, o valor da vida aparece efetivamente. Portanto, a possibilidade de ser  enlutada é um pressuposto para toda vida que importa. (BUTLER, 2015, p. 32)

As populações sacrificadas, por estarem destinadas à morte, por não terem suas vidas reconhecidas como vidas, tornam-se não passíveis de luto. Isto significa que no consenso geral da sociedade, entende-se que existem vidas cujo pressuposto é de que, quando se acabarem, serão lamentadas justamente porque foram vividas, tiveram importância, e por outro lado existem vidas que não contêm esse mesmo pressuposto, vidas que não serão enlutadas quando perdidas porque nem são, a priori, consideradas como vidas vivíveis. 
Pode-se afirmar, nesse sentido, que há uma regulação do luto através de enquadramentos realizados cotidianamente pela mídia, o que implica na grande responsabilidade desta em promover ou impedir a comoção social. As vidas passíveis de luto são nomeadas, narradas e noticiadas. Por outro lado, as vidas pelas quais não devemos nos comover e lamentar são desprezadas, esquecidas ou investidas de ódio pelas narrativas cotidianas da tv.

   A distribuição desigual do luto público é uma questão política de imensa importância. Tem sido assim desde, pelo menos, a época de Antígona, quando ela decidiu chorar publicamente pela morte de um de seus irmãos, embora isso fosse contra a lei soberana. Por que os governos procuram com tanta frequência regular e controlar quem será e quem não será lamentado publicamente? (BUTLER, 2015, p. 65)

Os exemplos dessa distribuição desigual do luto são infindáveis! As populações da África são massacradas todos os dias pela guerra, mas não têm nome nem rosto. Os palestinos também, os refugiados, os transexuais, os presos de Guantánamo, sequestrados sem julgamento e os muçulmanos assassinados pelos drones americanos. Os encarcerados brasileiros, os insanos mentalmente e os jovens negros da periferia, nenhum deles comove. Não há indignação porque não há luto público. O luto se relaciona diretamente com a comoção, abrindo a possibilidade de outras respostas afetivas que não a indiferença. Vale ressaltar: quando um atentado terrorista ocorre na Europa, como foi o caso de Paris em 2015, a comoção é generalizada, pois há uma cobertura da mídia favorecendo tal disposição de sentimentos. Esta mesma cobertura não é realizada em outras situações e países.


NOTA: 
1. Todas as citações referem-se ao livro de Butler, Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?
2. O texto seguirá na próxima postagem.        

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