Literatura e escrita: um exercício de afetividade

Uma mãe precisa contar algo importante, deveras importante, à sua querida filhinha, mas sente um medo paralisante. Um marido necessita revelar certa história para sua atual esposa, sob pena de ocultar um segredo que futuramente poderá encerrar a relação.
Um adolescente deseja se matar porque imagina que, ao expor um fato abominável aos seus pais, será odiado e colocado para fora de casa. Uma mulher não suporta o peso do próprio passado, sofre calada frente ao companheiro, refletindo diariamente sobre qual seria a melhor maneira de dizer-lhe a verdade.
Alguém muito jovem começa a escrever um diário, à moda antiga, com papel e caneta. Nele ficará registrado uma versão de si mesmo. Os temores, as angústias, o vazio, as aflições talvez.
Eis que outro alguém resolve escrever uma carta para contar o indizível necessário, aquele segredo de pai, aquela lembrança torturante de esposa/amante, um ato terrível ou desleal de filho.
São esses, tampouco e somente, alguns fragmentos de histórias, de dores e fragilidades humanas.
  
Por vezes no entanto, nada de especial haveria para narrar ao outro, nenhum ato excepcional, nenhuma ocorrência em particular. Apenas sentimentos pouco amistosos, desejos incomunicáveis, palavras não pronunciadas no momento certo.  
Foi nessa lida que Kafka escreveu Carta ao Pai, uma obra literária e autobiográfica de valor inestimável, em que ele expressa todo seu sofrimento em relação à pessoa do pai. Opressão, terror, raiva, humilhação. Leitura obrigatória para quem trabalha com afetos, mesmo que não ame literatura.

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Em um tom absolutamente mais delicado, lírico e tocante, João Anzanello Carrascoza escreveu a Trilogia do Adeus, ou dos deuses, eu diria, porque tão belo e poético que solicita ser celebrado.
Três pequenos escritos desse autor brasileiro - Caderno de um Ausente, Menina escrevendo com o Pai e A Pele da Terra -, enriquecendo nosso repertório afetivo e imaginário.

No primeiro, um pai de 50 anos relata à sua filha, que acaba de nascer, toda a história do seu nascimento, sua genealogia familiar e, principalmente, de que matéria consiste a vida: de perdas, de desafetos, de poesia embaralhada a alguma alegria. "Eis que, embora viver seja coisa grande, é também a força que lhe contraria, e não há como vencê-la, senão aceitando que a dor desenha em nossa pele, com esmero, um itinerário de pequenos cortes, ora arde um, ora sangra outro, e, as vezes, todos, juntos, nos queimam, em uníssono."

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No segundo, a narradora é a filha, continuando a história anterior. A filha fala ao pai, apresentando-nos sua memória afetiva, doce e singela. É mais do que comovente acompanhar tal narrativa, as percepções e desejos da filha com este pai tão querido e importante.
Evidentemente, a esta altura do texto, já estamos inspirados a dizer ou escrever para os nossos também. O que eu não disse ao meu falecido pai? Ainda há tempo de dizer, escrever? Como eu contaria a nossa história?

No terceiro, volume final da trilogia, é o filho mais velho do pai em questão que se torna narrador, dialogando então com seu próprio filho em uma viagem encantadora.
E esta viagem, é claro, nós também a fazemos todos os dias, com grande dificuldade, vivendo as relações familiares que nos pertencem.
Será que poderíamos torná-las mais suaves e menos cruéis? O que não dizemos uns aos outros, o que nos recusamos a escutar?
Quem sabe possamos começar a escrever... e a ler os olhos do outro. Para aprender a sentir e partilhar o afeto que tanto nos faz falta.


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