A Náusea: uma reflexão sobre os nossos tempos

Há cerca de um ano, na passagem de 2015 para 2016, me aventurei na leitura do romance A Náusea, de Jean-Paul Sartre, livro que estava em posição de espera há décadas. Para um período festivo, não foi uma escolha muito adequada. Trata-se de uma obra existencialista inesquecível, de difícil assimilação e, como o próprio nome anuncia, nauseante.

Sartre, como é sabido, foi um dos maiores filósofos existencialistas franceses do século XX. Autor e escritor importante, destacou-se tanto no cenário literário quanto intelectual e político, além de ter sido companheiro de outra filósofa não menos importante, Simone de Beauvoir.

A Náusea teve sua publicação merecida em 1938, porém foi escrita por Sartre durante toda a década de 30, época em que o nazismo crescia e se expandia. Conta a história de um homem solitário, que depois de viajar por diversos lugares decide se instalar em uma cidade, na qual não consegue se relacionar com as pessoas ao redor. Integrante, ao mesmo tempo em que observador crítico da sociedade e dos costumes, sente-se constantemente mal, com náuseas que nunca se acabam. O romance foi narrado em primeira pessoa, possibilitando que os leitores partilhem com profundidade dos pensamentos e sensações de Roquentin.

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Muitas foram e ainda são as interpretações sobre este livro de Sartre. Obviamente, enquanto filósofo existencialista, Sartre estava discorrendo sobre a ausência de sentido da vida, sobre o tédio e a necessidade dos seres humanos de se reinventarem o tempo todo para se sentirem razoavelmente vivos. Esta visão de mundo foi configurada de maneira peculiar por diversos pensadores da era do fascismo e do nazismo, refletindo o horror e o desespero da época.

Nos anos 30, assim como hoje, o ódio era o “espírito do tempo”. Por isso pode-se considerar A Náusea como uma narrativa absolutamente contemporânea. Quem é que não se sente nauseado, aflito e enjoado com as palavras, as manifestações e as propostas carregadas de xenofobia, racismo, rancor e ignorância que estão cada vez mais em ascensão, tanto nas redes sociais quanto nas relações concretas do dia-a-dia? Quem é que não se incomoda com essas agressões permanentes a destruir vidas, projetos e o futuro da civilização?

Talvez ainda não esteja claro o suficiente que uma sociedade pautada pelo ódio é uma sociedade decadente e doente, do ponto de vista físico e mental. Tanto assim que as estatísticas sobre a depressão e o suicídio crescem assustadoramente, em especial entre os jovens e as crianças do mundo todo. A morte por problemas de coração e outras enfermidades que se relacionam ao contexto sócio emocional também está aumentando.

Em um primeiro momento, não é fácil perceber a conexão entre o ódio e as enfermidades. Para entender este vínculo, consideremos: o ódio é um afeto, um sentimento, uma emoção que faz parte do repertório sensível dos seres humanos. Ele está sempre presente, bem como os outros afetos, tais como carinho, ternura, inveja, medo. Todos esses afetos constituem e se articulam na subjetividade das pessoas e nas relações entre elas. Quando um destes afetos é estimulado demasiadamente e com irracionalidade, seja no campo social da família, da escola, do trabalho ou da mídia, resulta em patologia, implicando sofrimentos e dores.

Atualmente o sofrimento de todos nós, seres da modernidade, relaciona-se a este afeto abjeto: o ódio. Entre pais e filhos, entre casais, entre irmãos, entre amigos, colegas de trabalho, cidadãos de nacionalidades diferentes, de orientações sexuais diversas, de ideologias políticas distintas, de culturas divergentes ou iguais, entre todos nós e também na relação que temos conosco (eu comigo mesmo), habita um ódio que precisa ser contido, revisto, reavaliado, desestimulado, criticado, enfraquecido ou, como diria Freud, sublimado.

A náusea que sentimos é apenas um sinal de que algo não vai bem no "reino da humanidade". Busquemos a reinvenção, um outro destino para nós mesmos, como profere Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa:

“Tenho náusea carnal do meu destino.
Quase me cansa me cansar.
E vou, anônimo, menino,
Por meu ser fora à busca de quem sou.”

Verso do poema Carnaval.

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